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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Todo Dia - Por: Rafaella Ranauro

Tive o prazer de receber esse texto cheio de palavras lindas... 

1.     Todo dia
Eu tenho que escrever. Infelizmente não sei sobre o que. A verdade é que eu gostaria de escrever sobre tudo, só o que me impede é que gostaria de escrever de maneira bonita sobre as coisas. Talvez porque as coisas não sejam bonitas e quando eu passo-as para o papel elas precisam minimamente tornar-se desse jeito. O que acontece é que quando me preocupo com a beleza dos acontecimentos a serem postos no papel, acabo não botando nada, e nem bonito nem feio o papel fica, fica simplesmente branco. Branco é nada? Branco é vazio? Branco é silêncio? Branco está cheio de todos os meus quereres. Folha em branco não impede de que tenha algo ali. Muitos algos. Algos de todas as cores, mas eu não consegui deixar esses algos bonitos, não consegui fazê-los se movimentarem para além da minha grande cabeça e da minha grande alma. Branco é ausência? Gostaria de dizer aqui que quando escrevo, quero preencher a ausência do branco. O silêncio do branco. Quero querer colorido. Quero que meus desejos tomem formas, não sei desenhar, escrevo. Sempre foi assim. Na escola, me mandavam desenhar e eu pouco sabia além dos bonecos de palitinho. Pouco sabia além de uma casa chapada com um telhado, uma porta e uma janela. Já na aula de redação eu escrevia. Mal sabia as palavras que queria, mas escrevia. É claro, eu não conhecia muitas, mas sempre quis conhecê-las. Meu desejo no mundo sempre foi conhecer as palavras. Fazê-las se interessarem por mim, virem até mim. “Prazer, eu sou cáustica”. E então eu daria grande parte do meu tempo a descobrir como escrever cáustica. Que cheiro tem? Que forma tem? O que é que come? E foi aí que começou meu problema, quando comecei a conhecer as palavras, comecei a perceber onde ficavam mais bonitas, quais ficavam mais bonitas acompanhadas de quais outras, quais deveriam surgir na primavera, quais deveriam esperar ter chocolate em casa para aparecerem, quais precisavam de sorrisos e quais precisavam de choro. De repente eu me sinto assim, ficando louca de novo, porque simplesmente às vezes é inverno, às vezes tudo que resta na despensa é gengibre e muitas vezes quando tenho que sorrir, choro, e o caminho contrário. Às vezes sinto que eu não estou de acordo com elas, e isso me entristece muitíssimo, pois que tudo que eu já senti de mais precioso foi com elas. E com ele. Se ele não está mais aqui, eu sinto que deveriam elas, então, aparecerem, de muito auxílio seriam. Mas não querem. Fogem de mim. Já que tem vida própria é mais do que certo que tenham vontades próprias, não é disso que a vida é constituída? Vontades. As minhas são enormes, como o coração que tenho. Tudo em mim há de tratar-se com grandeza. Grandeza? Intensidade. Temperamentos que se movem, assim como as tais palavras que eu tenho dito. Palavras, eu vos peço, não me faltem. Corram para mim quando eu chamar. Escutem minha voz, mesmo quando ela estiver muda. Escutem, então, meu pranto. Ele não me escuta mais, eu preciso que vocês me escutem. De novo, parece-me que estou indo embora. Indo embora do que chamam de morada, do corpo que sou eu. Já não sei exatamente quem sou. Só sei que sou amante das palavras. Gozo nelas e com elas o que deixei de gozar com ele. Não posso suportar que me fujam vocês também, palavras. Eu digo aqui: se me fugirem, eu vou procurá-las. Bem sabem que se eu quiser, vou achá-las. Uma por uma. Não posso perdê-las. Recuso-me. Já me é suficiente a falta que ele faz. Não sejam vocês também motivo da minha angústia e do meu desespero. Não tomem o mesmo caminho que ele. Prometo ser boa. Prometo deixá-las seguirem o caminho que quiserem, acreditem em mim, como ele não acreditou. O que me restou foram vocês. Todo o amor dessa vida foi dele e de vocês. Estejam comigo, ao menos uma última vez. Ao menos até a próxima primavera. Juro aqui: irei fazer amor com vocês como nunca antes. Com toda a fúria e toda delicadeza que guardo em mim. Vocês são minha fúria e minha delicadeza. Me uso de cada uma de vocês como me usava de cada pedaço do corpo dele. Experimento. Provo. Quero lambê-las, chupá-las, quero tirar de vocês como já tirei dele, quero o ar do espaço de cada letra. Estejam comigo. Até que caiam as folhas de outono, pelo menos. Até que ele retorne. Até que.
 Esse texto foi escrito pela atriz Rafaella Ranauro.

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